Kamado
Uma exposição é como um corpo nu, com cabeça, tronco, membros, pulmão, coração e vísceras. Está tudo ali exposto, um indivíduo, não só um rosto, mas uma identidade.
E foi lá no Japão, em uma ilha abandonada pelos trabalhadores de uma fábrica desativada de carvão da Mitsubishi, que Julio Bittencourt encontrou os ingredientes para criar um novo indivíduo corpóreo, esse materializado nas fotografias que compõe a série Kamado. As imagens remetem ao sentido da sua busca pelo microcosmo que, segundo o artista, é onde estão contidas as “coisinhas para se falar de coisas grandes”, assim como a existência e o afeto. Assim também como a palavra Daidokoro, que significa lugar onde a comida é preparada em uma casa japonesa.
Se percorrermos a trajetória de Bittencourt antes de chegar até aqui, nos deparamos com as séries Prestes Maia, Cidadão e Ramos. Nessas fotografias o sujeito está sempre presente, a figura humana é central, é o elo, é o impulso para a sua criação. Em Kamado, fruto de imersões intensas em fábricas e espaços desabitados, este desejo de incluir o homem na sua fotografia se esgota e se transforma na certeza de que não há mais interesse por grandes janelas, por grandes espaços, por alvos certeiros, como antes pediam seus retratos.
Foram dois anos de pesquisa e produção dos mecanismos extremamente complexos para se chegar a Gunkanjima Island, onde a visitação e permanência são proibidas para os cidadãos comuns. A preparação foi digna de uma “odisséia de documentos”, uma viagem por leilões de botes infláveis até encontrar o inusitado. Ali estava um edifício onde todos os micro apartamentos e os espaços dedicados as cozinhas são iguais, com a mesma área, a mesma dimensão, o mesmo cano e a mesma bancada.
E aqui também mora um paradoxo, pois foi no encontro com pessoas, com outras pessoas, que Julio se deparou com a certeza de que sua busca está no resíduo do homem, no abandono, na fuga, na decadência do capital e na fragilidade e fugacidade do que é matéria. Como a corda pendurada, a boneca, o pote, objetos que indicam a narrativa de reminiscências daqueles que viveram ali. São memórias que não lhes pertencem mais, elas compõe um novo corpo, um outro indivíduo, Kamado.
Esta série mostra a liberdade de deslocamento com que Julio faz suas investidas, transitando em apêndices que não têm fronteiras, que lhe conferem seu processo criativo, o seu fazer fotográfico, a sua práxis de organizar, de padronizar com diferenças e de nadar na piscina todo dia as seis da manhã. Não como uma disciplina militar, essa que se limita a uma lista de atividades e ações, mas sim como a necessidade visceral de colocar a espinha ereta para manter a respiração profunda e em dia, como a luz tênue que incide em cada uma das fotografias.
Me parece que a intenção é não perder o elo mais frágil, a ligação mágica com a vida, o que acontece entre o fotógrafo e o que ele observa. Aquilo que não está no alvo, mas o que se passa no espaço metafísico entre ele e o objeto.
[Texto de Isabel Amado]
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Kamado
Fogão tradicional japonês alimentado por carvão
Daidokoro
Expressão em japonês que significa “lugar onde se prepara comida”