Julio Bittencourt registra resquícios de afeto em ilha fantasma do Japão [PT]

O Globo Newspaper
[Cultura]
May 6, 2016


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Fotografias da exposição Kamado falam de ausência em área abandonada há 40 anos

Todos os milhares de apartamentos na ilha de Hashima, no sul do Japão, são iguais em seu espaço econômico, sob medida para abrigar famílias de operários que trabalhavam na extração de carvão em minas submarinas. Comprada pela Mitsubishi Corporation em 1890, no início do processo de industrialização do país, a ilha de menos de 1 km2 de área chegou a ter mais de 5.200 moradores em imensos blocos de concreto (só um dos prédios possui 317 unidades). Mas, em 1974, a empresa interrompeu suas atividades na área, evacuando a ilha. Desde então, as construções vêm se deteriorando, e as moradias, abandonadas, diferenciam-se entre si ao revelar, em pequenos objetos, a ausência de seus ocupantes.

É nesse pedaço de terra em ruínas, usada como cenário para o vilão de Javier Bardem em 007: Operação Skyfall (2012), e declarada pela Unesco, em 2015, Patrimônio Mundial, que o fotógrafo paulistano Julio Bittencourt, 35 anos, encontrou o material para a exposição Kamado, em cartaz desde ontem na Galeria da Gávea. Ele vira fotos dos destroços num blog de turistas americanos, identificando os elementos que buscava para uma série que produzia então. Tentou em vão, junto a autoridades japonesas, autorização para trabalhar de madrugada (a série Algumas coisas se perdem para nunca mais serem encontradas pedia longas exposições noturnas). A falta de respostas levou-o a peitar a empreitada.

Com a ajuda de um produtor japonês, comprou num leilão em Tóquio um bote da guarda costeira, e desembarcou no local clandestinamente no fim de 2013. Durante 40 dias cumpriu a mesma rotina: era deixado ali, sozinho, de manhã, por períodos de 48 horas. À noite, fazia as fotos previstas. Durante o dia, andava pelos escombros da cidade-fantasma, e, ao percorrer o prédio mais alto da ilha, de nove andares, vislumbrou a série de fotos que apresenta agora.

— Vi as cozinhas abandonadas, todas absolutamente iguais, mas cada uma com resquícios dos moradores: tigelas, chaleiras, as paredes descascadas. Ficou claro que havia ali um novo trabalho. A leitura mais direta das fotos é a do abandono, da memória. O que a gente leva com a gente e o que a gente deixa para trás. Mas para mim fala de família, de afeto. A cozinha é onde as pessoas se reúnem.

Kamado é o fogão tradicional japonês, alimentado por carvão. Nas fotos de Bittencourt, eles ganham uma luz tênue vinda do exterior. Isabel Amado, curadora da mostra, chama a atenção para o fato de que esta é a primeira série do fotógrafo depois de várias em que havia a presença da figura humana, como Numa

janela do edifício Prestes Maia, 911 (que lhe rendeu o prestigioso Oskar Barnack Prize, da Leica, em 2007), Cidadão e Ramos — esta última, um surpreendente retrato dos frequentadores do Piscinão de Ramos, no Rio. Em Kamado, a presença se faz pela memória que não pertence mais aos que viveram ali — “Elas compõem um novo corpo, um outro indivíduo”, observa Isabel.

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